Ressaca

24jun15

Play. Ângela Rorô cantando Mares da Espanha. E eu me imaginava andando pelo Leblon às seis da manhã. Nem se eu me cegasse pra ver o que é bom. Por trás da canção, surge o barulho das ondas estrondando as pedras; parte-se já, de um engano: acredita-se que a água realiza apenas um trabalho de conveniência. Os bares do Leblon já fecham suas portas atrás de mim, garçons mal humorados puxam a água com rodos. Por trás deles, cadeiras cuidadosamente empilhadas sobre as mesas. É Inverno e inevitavelmente o casaco foi esquecido atrás da porta. O mar, paradoxalmente, solta no ar uma brisa quente, e nos desenhos daquela espuma branca que avança lentamente pela areia é quase possível ouvir sua respiração ofegante, de quem ao invés de buscar um acalanto, expande-se e expande-se.

Houveram tempos de alegrias passadas, mas no fugaz momento em que sou consolado pela brisa quente do mar, estou convicto de estar comigo só, um vetor que desanda pela madrugada. Sento no meio-fio e dianteira no horizonte em direção aos Dois Irmãos. Fecho os olhos; impaciência: aguardo ouvir o ronco do motor de um ônibus que me levará pra casa. Que caminhará quase desgovernado, desviando das pedras do caminho como num jogo de videogame. Mas insistentemente é o mar que me vem, que bate contra as pedras. E, o quanto mais lhe nego o olhar, mais ele parece estrondar as suas ondas, mais elas avançam e resfriam a areia até tocar meu pé. E me contamina com esse gosto de sal. No Rio de Janeiro o gosto de sal nunca deixa de ser um pouco familiar.

Havia os bares cheios de olhos cruzados, os silêncios estranhamente condescendentes; Os apelidos constrangedores para o garçom, condenáveis moralmente, é claro, mas que criavam uma espécie de pacto entre nós. São imagens demasiado abstratas, eu sei, mas é justo porque o som do mar tem esse poder de parecer uníssono. Não estamos num paraíso idílico onde a água escorre e se adapta e corre por entre as pedras, ao contrario, imagine colocar uma quantidade dela o suficiente para que crie uma sombra negra no horizonte. Tudo que não alcanço com o olhar está dentro de mim. A maior das pedras que resiste é incapaz de me oferecer uma experiência tão concreta.

A guinada repentina na curva, e parece verdadeiramente que vou transbordar como um daqueles aquários de criança, que o gato puxa para alcançar o peixe. Sim, eu sou o peixe dentro do aquário. Meu cérebro afogado me dá algumas pontadas de dor. E os músculos das pernas e das costas parecem se reter, se acossar dentro dos eixos. Sempre soube que teria a labirintite de meu avô. Pode ser só que eu esteja adormecendo lentamente, pode ser que a descida do viaduto em alta velocidade seja só mais uma lembrança vaga. Pode ser, ainda – destino trágico – que o vidro entorne – ele não quebraria pois isso seria demasiado trágico – e eu solte guinchos inaudíveis, falecendo no chão metálico do 434. Causa mortis: Apnéia.

Porém, mergulhamos, porém, a concretude, seja ela qual for, transporta-se para os vãos da memória. No rio de janeiro o mar é onipresente, ocupa todos os não-lugares, os que desaparecem no encontro com o olhar. Por isso, é necessário sempre respirar fundo sempre que subir escadas. Recomendo que se sincronize cinco degraus com uma respiração profunda. Evita o vômito e diminui a incidência de tremores nervosos.

Por isso também, ao chegar em casa, duas viradas na chave, e ainda de mochila nas costas, ainda pronto pra partir, realizo o pequeno ritual. Tomo dois copos d’agua, saúdo o primeiro no ar, e em seguida, de frente para a posição anterior, saúdo novamente. Com a esperança de que, daqui há algum tempo um outro alguém venha e rememore e sincronize esses tempos, e o brinde ocorra justo enquanto toca loucura é loucura / não me compreenda / eu amei demais.


o pensamento é uma espécie de erva-daninha

sentida a presença,

ele crava seu percurso circular,

e na segunda passagem a grama que era verde

desbota-se levemente

até secar

 

o pensamento é aquele refletor que incendeia a noite escura

e lança um clarão

é a cachoeira de fogos que se dissipa

e ficamos

os olhos tentam distinguir o breu contra o breu da noite

 

o pensamento,

ele me disse,

ela me disse,

é onde se furtam diálogos

e vivemos em companhia dos que já se foram

 

era com o pensamento que eu me encontrava

quando levava as roupas para a lavanderia

graças a ele nunca voltei para buscá-las

 

nele o amor se ocupa e se esquece


Havia tempos que não sentia seus olhos se deslumbrarem com mais nenhum movimento. Nenhum jogo de corpo, nenhuma invasão ou bombardeio. A Guerra, esse colosso maquinal, executara seu mais amplo movimento. A ele só restavam os passos da ronda noturna. Sua escala era às quartas. Pelos acampamentos já era possível ouvir baixinho, na calada da noite, pequenos resmungos, choros pontuais, saudades de casa, penas riscando os papéis. Cessara a agitação, os jogos, a música alta que embalara as vitórias. Nas guerras as vitórias são muitas, assim como as derrotas. Todo dia pela manhã o General esboça seu discurso motivacional num papel cheio de marcas de café. Ontem foi um grande dia. Conquistamos os campos ao norte de uma pequena cidade de médio porte. De médio porte. Quando a cidade era tomada, porém, não havia conquista que glorificasse. Eram ruas desertas. Mulheres que, quando haviam, se encarceravam em casa ao verem os primeiros soldados. Todo mito funda uma disciplina; a lisura dos uniformes, o quepe polido e lustroso, as estrelas alinhadas na ombreira direita, nada não resistia há dez dias de Guerra.

O amor pela pátria é o último dos amores, pensara. Amor sem objeto, saudade que não se retroalimenta. Por tempos a adrenalina lhe bastava. A adrenalina é uma boa distração frente aos passados gloriosos – todos os passados são gloriosos anti a guerra. São casas de família. É a mulher vestida no seu mais bonito vestido branco. São as luzes que se emparelham e entram uma a uma pelas persianas numa manhã de domingo. O céu de outono. O bebê que brinca com um carrinho na porta de casa.

Pois bem, em algum momento da viragem furta-cor que amacia os casais enamorados, nós nos apaixonamos pelas metralhadoras semi-automáticas. Aos 15 anos ganhara sua primeira caixa de ferramentas. Eletricista. Aos 18 foi dispensado do exército: reprovado no teste de aptidão física: bebera muito na noite anterior. Nunca lhe ocorrera que pudesse estar numa Guerra. Muito menos depois dos 30, quando a vida já oferecia mananciais de conforto (casas mobiliadas, tevês de tela plana, fogão de seis bocas, cozinha planejada). Com seu barbeador elétrico Phillips não é necessário nenhum esforço para fazer a barba de manhã. Marcha automática.

O treinamento, a devoção ao corpo, tudo aquilo recuperara algum instinto distante lá nele. Horas e horas se arrastando pela lama. O tenente contando em voz alta as 100 flexões do corpo pendurado sobre o desfiladeiro. 10 Km de corrida pela manhã. Os banhos de água gelada com o corpo ainda quente. A cada ponto de sacrifício, algo nele se regozijava. Depois disso, as lutas na academia, o tiro ao alvo na academia. Nada pode ser mais indescritível do que o barulho singelo que fazem as metralhadoras semi-automáticas. tec tec tec. Mais belo que o canto das cotias que habitam o jardim de suas casas. Puxa-se o gatilho apenas uma vez. Há alvos moventes que se atiram nos abismos do caminho. O dedo exerce uma pressão mínima por sobre o gatilho. O estalo inicial apresenta o desfile, e as balas, na velocidade de um zunido, graciosamente saltando em paralelo.

A bala atinge a barriga de um homem e perfura seu intestino. Ele cairá de joelhos e lembrará de quando a mãe lhe deu um rádio vermelho FM, ainda na infância. O Instante se glorifica também no horror dos corpos mutilados. No canto de uma estrada, junto à roda quebrada da carroça, há uma perna. Há uma quebra na verossimilhança do mundo no existir isolado daquela perna. A perna não se move. Mas tem textura de perna. Não tem cor de perna, é verde-azulada. Mas é profundamente reconhecível. Não há um homem que a sustente, mas uma verdade permanece, na corda bamba.

O corpo declama sua existência. Por muito tempo, impressiona-se na Guerra – por assim dizer, as surpresas eclipsam as rotinas. Há algo etéreo no ar… a magia do corpo do homem que desaparece em segundos no campo minado. A dança de outro que baila num zigue-zague desviante pelos descampados enquanto bombas caem do céu.   Alí atrás havia um bosque. Que se chamava solidão. A Guerra torna irrisórios todos os dramas individuais. Toda paisagem torna-se uma planície em tons terrosos, tal qual naquela fotografia antiga. Cor de terra revirada.

Havia um Inimigo, ele se escondia por trás do nome dos outros. Mas caminhar pela guerra é ver soldados de todos os tamanhos e cores. De cabeças com formatos arredondados ou quadros. Paus pequenos e grandes nos banhos coletivos. É o tempo quem acaba com todas as Guerras,. O inimigo é anunciado todas as manhãs nos alto-falantes. Mas são as mesmas manhã. A ração de leite e cereal não adquiriu novos gostos.  Talvez nenhum outro gosto seja possível. As colheradas são cheias e repetitivas. Há 10 minutos para o café da manhã.  E as bombas seguem a cair do céu,  como se fossem geridas por entre as nuvens.

Eles andam e retomam e esperam ordens da base. Acampam. Retornam ao acampamento anterior. O inimigo os espera para atacar pelas costas – Há algo de profundamente heróico em esperar por trinta dias, quase sem mantimentos num acampamento perdido no meio do nada? Entre as palavras motivacionais que clamavam Vitória! Luta! Coragem! Progresso! Liberdade! – nenhuma falava em Resistir.

Aos farrapos humanos importa pouco retornar vivos ou mortos, afinal é mais uma questão de sorte do que de qualquer outra coisa. Não foi possível calcular ainda todas as trajetórias das bombas (É um dos papéis que o jornalismo ainda se reserva). Ainda não se tem certeza dos ângulos possíveis que a bala assume quando rechicoteia numa pedra. Ou do conjunto prerrogativo e letalidade dos 235 tipos de venenos de cobra conhecidos.

O medo da morte provém dos outros.. Os cochichos à noite. Não à toa os mensageiros são, nas Guerras, figuras amaldiçoadas. Um dia uma bomba é depositada na caixa de correio de um subúrbio americano qualquer. A bomba, porém, já foi detonada semanas antes. Persistem seus vestígios. Entram por debaixo das portas em selos oficiais. Ou são entregues em mãos às mulheres que passam seus dias sentadas a bordar na varanda. A passar e realinhar uniformes-reserva. E, contrariando alguma lei natural, persiste nas dobras o odor do soldado que partiu.

Haviam noites de insônia e tédio. Carregava-se nas costas três pequenas panelas de alumínio, uma barraca, uma manta, duas mudas de uniforme, carne enlatada, camisetas brancas, uma escova de dente portátil, duas granadas, uma pistola, munição de diversos tamanhos. O inimigo ainda estava escondido por entre as folhagens distantes. E foi preciso arrasar toda a terra. Produzimos nossos desertos futuros.

Mas o corpo já não responde como no princípio. Já não se sonha com cervejas geladas e mulheres bonitas que glorifiquem as vitórias. As vezes é possível avistar o inimigo de soslaio. Ele também nos olha e está tão derrotado quanto nós. A voz no banheiro ganha uma eco quase espiral. A cidade nunca chegou. A vitória definitiva não chegará. E só há um valor que termine todas as guerras: a paz dos músculos cansados – ela que se denuncia pelo aperto frouxo das mãos dos líderes planetários. Ou a grafia escorregante nas assinaturas dos acordos de paz.

Quando a insônia cessa e o cérebro começa a falhar e a pulsar lentamente, já se vê, por trás da lona das barracas, a aurora da manhã. A essa hora ela dorme por sobre lençóis recém-trocados. Ela troca os lençois todos os dias na esperança que ele chegue. Por hábito ou talvez por que instituiu sua vida à espera da carta que chegue e a liberte. Que a devolva ao mundo do porvir, sem espera nem angústia.


cinco minutos

04jul14

ontem fez um mês que te vi pela última vez

quer dizer, relembro

 

nenhuma notificação

um fuleco gigante pintado no asfalto

o carro dos ovos chegou

pequenos filetes de papel crepom em contraluz

eu fumo um marlboro na rua como todo mundo

 

a voz de Maluf nos altos falantes

ovos fresquinhos diretamente da granja

um narrador exaltado na sala de estar 

onomatopéias de beijo do fundo da casa

ou de algum passado remoto

o carro desaparece numa esquina

 

a música ainda não terminou e eu acendo outro cigarro

ainda sempre nada da tua mão

fica pra próxima

 

no meio da tarde soluça,

quer dizer, relembro

 

o sol se retira por trás dos muros

um instante único em que o poema mais lírico

se torne a coisa mais lógica

 

a senhorinha carrega as compras com dificuldade

na ladeira

inclinados a trinta graus

se meus pés se movessem

eu lhe ofereceria ajuda


é verdade, avoou

o pé em falso num degrau da escada

a madeira já era antiga

cheia de cupins

tábuas rasas sem preenchimento

 

pendurou-se no umbral da janela

costumava brincar com os pés dançando no ar

todo seu peso sustentado sobre aqueles braços finos

 

braços finos, é verdade

mas que conservavam um pequeno trecho macio

alí do lado de fora entre o cotovelo e o ombro

bom para umas mordidelas

 

a julgar pelos gritos

algum desabamento ocorrera

eu já observara, é verdade, 

algumas rachaduras na parede

que se estendiam de cima do rodapé

até os cantos onde subiam as venezianas

 

frio frio

ela esqueceu a janela aberta

apesar da tarde fria

a parede já está de pé

as rachaduras se apagaram

como um tempo que, ao revés,

apaga suas marcas

 

ela gosta de plantas

a brisa fria de outono agita as folhas na sala de estar

ela não

ela avoou com asas repentinas

e não tive mais nenhuma notícia do seu paradeiro

 

 

 


a estrada

10out13

não sou eu quem caminha pela estrada, é ela quem segue meus passos, os faz passageiros, impõe-me correntes de vento ao redor dos cabelos – e os cabelos flutuam e desmancham-se e formatos múltiplos, a estrada brota no olho e abre o caminho quando o olho cansa de ser estancado por cada bloqueio que não permita seu livre circular, seu direito ao horizonte. a estrada está mesmo no meio da cidade, numa birosca da esquina, ela está no meu whisky duplo, a estrada permanece numa música longingua e cheia de chiado, a música que toca no rádio dentro da birosca.

 

eu saio de dentro do meu copo de whisky, passo pela melodia enquanto o músico dedilha no piano aquelas notas dissonantes, e acompanho toda a superfície da madeira do balcão postado de frente pra porta: eu estou viajando – mas tal conclusão me interrompe. do lado de fora já haverá uma estrada de terra por onde um também velho ônibus de viagem passará levantando poeira, a estrada é de cor de barro, como são também as fotografias antigas, e aqueles velhos que esperam o ônibus naquele ponto, os velhos que estão alí há anos, a poeira depositada por sobre seus ombros, eles estão à beira mas seus olhos são pontos mortos, sem previsões, estão ali, acumulando-se, tornando-se tão breves quanto a paisagem.

 

a estrada não permite percursos de retorno, fotografias demarcam o caminho por onde é proibido voltar. a estrada permanece em mim exatamente enquanto não decido meu circular, enquanto permanece vívida e pura o desejo de passar pelas cores todas num estalar de dedos. não forjarei minha própria estrutura (é mais provável que o corpo se dissipe). quando estou calcado no concreto, nada que é externo me atinge, só há uma fumaça relutante, que retém e ambiciona todos os cheiros, ao invés de exaltá-los.

 

pois a estrada permanece também no ar que me cerca, a terra molhada e os perfumes diversos e o esterco e um livro antigo e um cigarro de palha que o ancião aperta calmamente. a estrada não é qualquer estrada, lá não passam automotivos de última geração a 100 por hora, não, a estrada é a que cabe nos pés, é a que se esconde por trás do ritmo desses passos tortos, cheia de curvas, ela se desenha.


Serpente

09set12

Contornava desde o princípio o centro, a serpente. De forma que ainda dentro do ovo, evitava seu centro, transitando entre as paredes oblíquas, de volta em torno ao mesmo ponto.

Quando Nora entrou, permaneceu em silêncio. Ao vê-lo virou rapidamente o rosto. A porta antiga então sendo encostada lentamente, rangendo. Ela permaneceu, ainda, o rosto virado à porta, as costas à ele. Quanto tornou (a porta já fechada), acomodou-se na pequena poltrona marrom que destacava-se do resto dos móveis no Hall. O ambiente lembrava brevemente um consultório psicanalítico, pelo grande espaço dado à poltrona no meio do Hall. A serpente já com a visão turva de todo o branco sem fim aprontado ao redor, fazia força contra as paredes de seu casulo, e, sentindo-o ceder, investia seguidamente a pequena cabeça em direção a um mesmo ponto do espaço. Ela cruzara as pernas e deixara-se escorrer junto com a capa que cobria a poltrona.
O homem a olhava fixamente desde que ela entrara.

– … não me pergunte essas coisas, não vou saber responder. eu não sei… eu não tenho nada com ele, é de ti que eu gosto! não lhe parece? por que duvidas tanto? ainda que alguma curiosidade tenha me atraído a atenção para aquele homem, por que, qual seria a predisposição básica para achar que não gosto de ti?

– nunca disse isso.

Há essa altura, Nora já percorria o ambiente inquieta. Olhava durante algum tempo para baixo, para os móveis, mantendo sempre alguma distância do homem que permanecia do lado oposto do cômodo a observando atentamente. Quando ia dizer algo, virava em sua direção, sempre se forma brusca como se efetivamente o pensamento houvesse lhe ocorrido de repente:

– por tão pouco! por tão pouco passa a duvidar de mim assim, abertamente.

– eu vi, Nora.

– viu? viu o que? não há nada nada demais para ser visto – dizia, enquanto fazia repetidos movimentos com o pé direito contra o encosto da poltrona –  faz mais de dois anos que estamos juntos e no primeiro problema…. ele esteve o tempo todo a me olhar, você devia saber… estranhei, é verdade, ele é teu amigo, e nunca dera nenhum sinal disso antes mas justo naquele dia (e foi mesmo só aquele dia) ele me olhava fixamente. eu verdadeiramente me incomodei, levantava, mudava de lugares. faz mais de dois anos que estamos juntos e agora, de repente se pega a desconfiar de tanto! este homem ele… me inquietou, mas só por um instante, um instante assim um tanto quanto insuficiente perto desse tempo todo… estranhei-o… na verdade…  estou tão surpresa quanto ti!

Circulava já por alí, a serpente. transitava por entre o rodapé da sala. A pele, ainda viscosa, do esforço do nascimento, ia deixando um rastro contínuo manchando a borda das paredes. ao mesmo tempo, confrontava-se contra as coisas e ia adquirindo densidade, pois enquanto a primeira pela descamava, revela-se uma textura interior, propensa a ser definitiva, que traçava-lhe desenhos por toda a extensão do corpo. Crescia rápido e logo enrolar-se-ia à luminária ou lentamente contornaria as paredes para pendurar-se ao lustre, de forma que estivesse numa posição favorável contra qualquer presa possível (pois estas em geral vivem a rastejam e costumam estancar quando ameaçadas).

Contornara a poltrona por trás e chegara ao centro da sala, de forma que suas feições ficavam mais claras, mas ele não podia ver-lhe o rosto pois ela olhava para baixo. De repente, acalmara os movimentos e quase arrastando os pés, se aproximava dele. Imediatamente quando começou a falar, esticou a mão

– desculpa!, eu não queria fazer nada disso, eu entendo você eu… eu sou uma idiota, eu fiquei curiosa… – E tocou-lhe o braço, permanecendo com a mão alí circundante entre seu ombro e seu braço, prometendo um abraço (que nunca se efetivou). Ele ainda fixo no mesmo lugar.

Desligou-se por um instante daquele momento que parecia redundar-se sempre ao mesmo ponto – o julgamento do que seus olhos haviam visto ou não. Difícil era manter-se intacto e indestrutível pois a vontade era abraça-la firme, chorar copiosamente ao seu ombro e e dizer que perdoava-a por tudo. Ou não, ou empurrá-la e ofendê-la com palavras baixas, sair batendo a porta. Ou ainda trancá-la ou deixá-la ir e correr ao encontro dos dois com uma arma sob o casaco.

Mas há de se permanecer como fortaleza, única forma de se resguardar. Olhava-a atento e tratava de tentar repetir mentalmente a cena assistida àquela manhã. Lentamente a mulher erguia o rosto, bem à sua frente e a rememoração da cor de seus olhos lhe apagou lembranças anteriores. Parecia ter levantado a cabeça para falar, mas permaneceu longamente em silêncio.

– me deixa ir, então. deve ser isso. foi um desvio, um relapso, mas já que me consideras tão culpada assim acho que não posso fazer      mais nada por aqui. já te pedi desculpas. – e dito isso, deu um passo para trás a mão repousada correu rapidamente pela superfície das suas costas até deixar de tocá-lo (é quando ela se vira). mas, ao invés de fazer menção de continuar andando, ela simplesmente estacara no mesmo lugar e abaixou a cabeça – não tenho mais nada a fazer aqui.

-pare com isso, por favor…

Arrendava-se em arroubos regulares a serpente. E tornara a constituir-se seguidamente aos tropeços, com sofreguidão quando da voz da mulher desvirginavam palavras nocivas quanse incestuosas que o provocavam certa náusea existencial. Àquela altura, tivera que fazer um esforço pois já sentia uma certa tonteira (e seria verdadeiramente ridículo se desmaiasse em meio àquela discussão).

A serpente tornava e torneava e contornava os móveis do quarto, rastejando enquanto gemia sua lingua afiada (a serpente tinha objetivos). Sua segunda pele já toda tinha um aspecto lustroso, e refletia a luz que entrava pela janela de modo que se qualquer uma das pessoas daquela sala não estivesse tão absorvida em si, teriam estranhado um reflexo cruzando rapidamente a sala. E provavelmente não enxergariam-a pois a serpente já acostumou-se ao novo habitat e quando em risco, camuflar-se-ia na textura esverdeada do tapete, envolvendo-se em suas irregularidades.

– me interessam pouco os momentos de sofreguidão com outros homens – disse ele. Era de certo confiante de seu poder de convencimento, e pretendia cessar o choro da mulher com essas palavras. Ela porém debulhava-se e novamente tornara a tentar encostar seu rosto no ombro dele,  repetidamente puxando-o com os braços (com afago) – não estou bem, mas já é algum consolo, se me dizes isso…

Sentiu nesse momento uma respiração mais profunda da mulher junto a si. E lentamente, ela afastara o rosto de seu peito para que pudesse ouvir o que ela tinha a dizer.

– ainda me é estranho que assuma essa posição tão firme contra Will. este homem é suficientemente respeitoso ante o senhor, não seria justo crer que tivesse a ação de me galantear de forma pensada anteriormente. julgo que foi apenas um impulso inconsequente… não deveria levar tão a sério.

O nome daquele homem, porém, despertou-lhe de uma certa morbidez (provavelmente ocasionada pelo forte cheiro adocicado de shampoo da mulher). cheiro que agora já lhe parecia enjoativo. desvencilhou-se e dessa vez ele mesmo se pôs de costas, olhando pela janela lateral. Como devia ser uma ou duas da tarde, não parecia haver muito movimentado na rua de fora. Dois prédios a frente, uma obra que costumava fazer grande barulho, agora cessara. Hora do almoço, pensou.

Tais pequenas distrações serviram-lhe de escudo para em poucos segundos rememorar ainda o que vira naquela manhã, poucos dias atrás. Por trás da porta de madeira-escura, por entre os vidros que davam ao quarto de visitas, vira ela, na ponta do pé, propriamente para alcança-lo. na realidade, vira a ponta do pé dela – há diferença? Recuando contra parede para não ser visto, um homem e uma mulher. distorcidos pela superfície rugosa do vidro. moviam-se, porém, de forma um tanto quanto familiar… os rostos postos um a frente do outro não lhe permitiam prever suas expressões. Verdadeiramente, os rostos pareciam tocar-se. O cabelo loiro, a altura, tudo remetia a figura daquela mulher agora estranha.

Fora despertado por um sibilo ziguezagueante. Ao virar-se viu, esgueirando-se por entre um descanso de pé e uma cadeira um movimento se rastejando. Não pudera vislumbrá-la, pois virava-se frequentemente em direção a parede, buscando os cantos mais escuros. Seu corpo longo, porém, era passível de ser acompanhado pelo olhar. Tal sibilo e tal traçado tomaram a atenção do homem de maneira verdadeiramente hipnotizante, fazendo-lhe percorrer todo o ambiente. A mulher, sentada na poltrona principal, cruzava os olhares com ele de vez em quando. Ele porém se determinara a nunca deixar que o olhar permanecesse sobre ela por mais que três segundos, sob pena de arrefecer-lhe as lembranças.

A mulher, percebendo que já não ocupava a centralidade do olhar daquele homem, deslocara-se em sua direção, tentando-o olhar nos olhos. O homem, porém, desviava-se, impulsionado também pela curiosidade de decifrar que ser era aquele que traçava-lhe caminhos em torno. A determinado ponto, o sibilo da serpente tornara-se mais presente. Era justo como se esta já percorresse o corpo daquele, cruzasse-lhe a nuca em torno dos ouvidos ( pelo volume, contudo, não deveria mesmo se tratar de uma serpente muito grande,). Mas a mulher envolvia-me constantemente em seus braços: ela jogou-lhe os braços por entre os ombros e tornou os olhos verdes irreparáveis. Eram belos olhos, de fato, e com a luz de frente a eles, revelavam uma quantidade imensa de tons, que não eram claros numa primeira vista. Com as duas mãos em seu rosto, beijou-lhe rápido mas empurrando a lingua fundo contra sua boca. E logo quando a retirara já reiterava a dizer:

– deixe disso, foi por pouco e foi pouco e acabou. por muito mais poderia ter te mentido antes, mas não o fiz. não seria por agora que deixaria tal juízo mau me arruinar ante a ti. não seria verdadeiramente capaz de jogar-me aos braços de outro homem, muito menos um conhecido teu! por que desacredita minhas declarações?  bem sabes que elas não nasceram agora.

– está desistindo dele, então?

– desisto dele facilmente pois não se trata só deste homem, são muitos, são todos, não se priva aos gostos simples, individuais. pois os desejos não cessam quando os alimentamos, ao contrário, expandem – e dito isso, trouxe minha mão para junto da sua pele – afloram e necessitam ser preenchidos por outros. irá me culpar agora por qualquer troca de olhar com um desconhecido? eles não tem nada, tem migalhas, pouco a pouco para cada. não estás a lidar comigo, estás a lidar com tuas próprias elocubrações imaginárias. se ainda não acreditas, e preferes me deixar, então me deixe. ainda terei pouco, por certo (alguns corpos a me servir), mas a você só restará recomeçar do nada.

Deixei a mão cair por sobre sua pele, levantei-lhe a borda  do vestido. Instantaneamente, porém, ouvi o som de um sibilo percorrer o espaço atrás de seus olhos, e a mulher virou rapidamente, como aborrecida por haverem interrompido aquele momento. Deu um pulo pra trás, pela primeira vez consciente que outra criatura habitara aquele espaço. A serpente assustada correu para baixo da cortina. Me parecia que fazia mais barulho (ou seria apenas porque eu mantenho os ouvidos mais atentos?).

Olhei fixamente para a abertura em torno da cortina. Quando a serpente retirou-se do seu esconderijo não estava mais apressada ou cheia de medo como outrora. Pelo contrário: sibilava devagar, sensualmente e ziguezagueava circularmente em sua direção. Seu corpo parecia mais alongado, de forma que ela se sustentara sobre a parte inferior e levantava toda sua superfície, parando exatamente em minha frente, Nora de costas. Por certo, os tempos nos temporários lares escuros tornaram-a inconsciente de seu tamanho ( e só agora eu percebia que o réptil já media mais de dois metros).

Alertada pela minha expressão, a mulher olhou-me fundo nos olhos e, quem sabe, viu no reflexo a serpente que se projetava por trás dela.

A cena seguinte transcorreu de forma intempestiva: a mulher virou-se repentinamente e soltou um grito ao ver o animal a sua frente. A serpente já tinha quase sua altura e erguia-se quase totalmente na vertical. Circulava a cabeça em círculos e a percebi antes de Nora, que era aquele o movimento da investida, que a serpente calculava a distância do bote, medindo a periculosidade da presa que já agora soltava longos berros agudos e recuava em minha direção e encostara-me o peito. Zigueziguava no ar, atiçando com a lingua enquanto a mulher arranhara meu braço com força. Tudo se dava na mesma fração e quando percebi que a serpente partia para seu bote final, empurrei a mulher no chão minha mão direita segura o corpo da serpente antes que sua boca alcançasse meu pescoço. Um tempo paralisado decerto,  a serpente a poucos centímetros de meu rosto, mas o que mais ouvia era o lamento da mulher

estirada ao chão. Do sibilar da serpente, nada, pois desconfio que talvez já houvera sido assimilado por meu cérebro como parte recorrente daquele mundo: som natural.

Da tensão terrível daquele momento, comunhei-me à superfície da serpente enquanto tocava-lhe a pele. Era difícil segurá-la por sua pele viscosa. Mas a mulher ainda jogada ao chão, em posição de total indefesa. Se simplesmente empurrasse o corpo da serpente em direção a ela, limparia as mãos e sairia pela porta, trancafiando à chave. Mas não, em tal impassividade tempestiva, apenas mantive-a presa. Quem, de fato, era a presa alí? Seus pequenos olhos esticados, mas reluzentes como duas pequenas bolotas cor de esmeralda. Parecia sentir dor, enquanto eu esmagara seu pescoço. Não sei como adquiri força neste braço direito para torcê-la contra si, fazer um nó, afastá-la poucos metros de meu rosto. Sua lingua sibalava desesperadamente, enquanto esganava-a. E quando joguei-a em direção a parede do outro canto da sala.

A serpente estatelou-se contra mobília, caindo inerte. De mim, fiz pouco caso da força daquele ser, pois quando lancei-a, me parece, perdi a força também em meu braço direito, que cedeu suas articulações, tornando-se uma massa amorfa, terrível contusão. Pemanecia ali, pendurado em meu ombro mas deslocado, à parte de mim. E conclui que possivelmente a serpente me mordera em meio ao turbilhão. E que talvez o veneno lentamente percorresse minhas outras veias, alcançaria meu peito e de lá para todas as partes do corpo.

Pela dúvida, o melhor era tomar distância. Levantar-me e morrer ao longe. Alí, pela primeira vez em tempos, eu ocupava o centro da minha atenção em toda sua palpabilidade, pois percorria com o olhar não mais as feições outra mulher ou qualquer animal oculto que transite entre as sombras, mas meu próprio corpo.

Apoiei o outro braço no chão, e levantei. A mulher berrava copiosamente, e resmungava alto. Algo que não ouvi. Atravessei toda a sala, passando ao lado da poltrona, que em meio ao movimento, havia virado no chão. Ainda tive tempo de olhar outra vez. A serpente estática atirada contra o piso. Onde orbitavam seus olhos, haviam apenas duas esferas reluzentes. Eram olhos esbugalhados, de um olhar de pavor, que ao canto sombreado, chamavam grande atenção. Durante meu trajeto de saída, pude crer que aqueles olhos mesmo parados me acompanharam. E antes de sair pela porta, tive certeza que ainda carregavam a parcela de alguma força vital.


boneco de piche

08set12

tua beleza

fruto podre

espaço em vão

terraço

deixo-te à mingua

morro

 

um corpo no caixão

sou agora

indolor

o céu é azul

 

o relógio corre

tomou-me a mão

enlaçou-me os dedos

conduzindo-os

traçando linhas tortas

 

retorna

deixa-me qual antes

ser que me escapa

alma a vagar

 

o boneco orgânico

ossos

pele

músculos

partes constantes

orquestradas

 

“dá-me liberdade”

de nada vale

amputa-me um braço

em troca

d’um andar desengonçado

 

põe a mão em meu peito

marcando em brasa quente

e por contato imediato

uma arritmia

 

mas então, vais

vejo-te ao fundo da tela

os cabelos longos, soltos

até perder-se

 

esqueceu-me

ou programou-me

para não mover os pés

 

toma-me uma vontade:

ser você

empastar-me na tua pele

longa amarra traída

 

mas prevejo-me

ressuscitado

corpo sem orgãos

tudo superfície

 

tenho apenas consciência

enquanto tens distância

 

foi bem ruim

andar atrás de mim

desengonçado


Câncer

25jun12

Tudo não levou mais que duas ou três semanas.

De início ela permitira uma ligeira complacência ao meu olhar. Fazíamos curso noturno e sentávamos a duas ou três carteiras de distância, eu sempre encostado ao fundo da sala para que a cabeça dos que se posicionavam a frente me encobrissem. Meu amor não era, a priori, explícito por declarações espontâneas ou mesmo recados de meia-distância, sem identificação. Olhava verdadeiramente por entre brechas, não so ela, como a todo o mundo. E por entre brechas um sorriso perdido ou um pedaço de suas costas desnudas.

Mas os trechos foram ferozmente ultrapassados, ainda que eu tateie e trate de conservar delicadamente um afeto pelos detalhes. Ainda não saberia àquela época que tal mulher me destruiria de forma tão nociva. Aos poucos, meu olhar acabou por ser subvertido pelo dela, não como aquele, em frestas, mas estampado na retina brilhante e longílinea  e estridente. De fato, esta mulher não era tão sensível a ponto de perceber minhas investidas tímidas, e em vez de uma aproximação constante, um somar para o qual cada olhar significasse, o que parece ter se dado foi um suspiro alucinante, fugaz mas definitivo, inspirado por mim, e expirado por ela. Como se tudo fosse assim possível gratuito desordenadamente.

Em questão de dois ou três dias, aquela relação, toda perpassada por fronteiras agora corria em campo aberto. Perdíamos a hora das aulas tagarelando pelos corredores, e ela me contara sua vida abertamente explícita toda de uma vez só.  Dos amigos, da  família, da angústia pelas suas notas baixas (ela sempre tão distraída).  Qual seu signo? perguntara certo dia, com um horóscopo de jornal à mão. Câncer. Ah, meu ex-namorado era Câncer… E dizia-me dos amores passados, sempre com uma reticência na voz, como se o falar ainda a remetesse a divagações nostálgicas.  Soltavam-se fagulhas entremeadas de prazeres da ponta de sua lingua. Eu me atrofiava, quase anestesiava-me como consciente do perigo por vir. Às vezes, verdadeiramente, a deixava depois de meia dúzia de palavras, mas não sem dúvida e angústia. Retraía-me mas a noite os pensamentos e as palavras tornavam. E tornavam as fagulhas a assolar-me – quando começaram? Disfarçadas por entre pequenos elogios e abraços que ressoariam na noite posterior e assim sucessivamente.

Eu não era, nem sou, verdadeiramente, um romântico. O concreto, porém, é que esta mulher, lentamente cerqueava minha vida para que não houvesse saída. Mas tal compreensão completa daquele momento e daquele lugar só fora possível passado o calor do momento. Não havia tempo – e lamento profundamente – para desenhar planos e plantas, demarcando os lugares onde eu deveria proíbi-la.  Não olhava-a inocente, mas de fato os momentos falavam mais alto que qualquer espécie de interrogação posterior. E aos poucos fui soterrando-me, e o primeiro beijo um soterramento, todas as minhas dúvidas postas a chão em poucos segundos, e eis que tudo o que poderia se tratar de invenção da parte dela, imediatamente se naturalizara. A lingua dela toda entremeada a minha expulsando-me qualquer possibilidade de respirar. No quarto andar, íamos a sala mais distante, uma das poucos sem aula àquela hora, e ela me agarrara contra a parede. Me encantava sua desinibição e seu libertarismo. Quando nos descobriram, rapidamente mudamos para as saídas de emergência, ou escadas de serviço e logo aquela espaço não servira mais a nossos anseios.

Bom seria se déssemos conta da tragédia logo assim quando ela se apresenta. Preveria a tragédia pondo os pés e adentrando minha casa. Que linda sua luminária. E logo depois, enquanto ela caminhava nua e acendera um cigarro discretamente, à janela. Mas aceitei o trago, e hoje me pergunto o quanto aqueles encurtaram meu caminho. Verdadeiramente, já nem sei mais o que tragava visto que o cigarro vinha com marcas de batom e empertigado de seu cheiro a ponta da lingua. Antes pensar que tudo bem, afinal, tudo se diluírá em fumaça e essa no ar, esparsada, para fora das janelas. E ainda eu, quando cinzas, ao ar.

É justo, porém, que haja desconfiança sobre minha parcialidade. Tudo decorre agora de uma falta de efetividade em me inventar. Seria esta, a única possibilidade de veridificar alguma lembrança, Mas não:  narro depois, narro quando já fui tomado e ao leito de morte. Não é útil nem verdadeiro saber de quando surgiram os efeitos da doença, visto que ela entranha-se aos primeiros  momentos de felicidade.  Ao primeiro sinal,  já não havia tempo hábil para desfazer o mal. Não podemos retirar seu pulmão, disse o médico, pois assim o senhor não poderá respirar. Minha primeira reação foi caçoar da obviedade da informação. Mas logo atentei que era a mim que faltava perceber o óbvio: há muito tempo já não respirava. Ao doutor havia pelo menos a desculpa de se apegar às razões práticas. Pelo mesmo que me engana e diz de tal doença como ente misterioso e inviolável, assim, sem nome. Mas o que tenho, doutor? Não sabemos lhe dizer, meu jovem. Talvez ao último dia, ou nem sequer aí. Quando abrirem seu corpo, pois lá que se reserva o mistério. E fiquei a carregar tal peso junto ao peito, como um fardo.

Por quanto ela me enganou e não permitiu que prestasse verdadeiramente atenção aos sinais de meu corpo que me avisavam continuamente de sua deterioração? Quantos acessos de tosse distraídos por cafunés, chazinhos, beijinhos. Ainda que eu não possa acusá-la, prestar queixa por homicídio planejado, tenho na memória a prova do apaziguamento nas horas de conforto que me proporcionou. Não aquele conforto como escapatória única ao destino trágico, mas verdadeiramente o conforto paralisante, próprio dos casais que se deixam estar em casa aos finais de semana.

Curiosamente, inviolavelmente, é o conforto que encontro ao abrir a porta de casa e revê-la de braços abertos e já nem sei se ainda consigo andar ou se sofro de uma séria falta de ar ao tenta articular um pé após o outro. Então verdadeiramente, ponho-me de joelhos e em seguida engatinho para logo então rastejar aos seus pés. Eu, um garoto indefeso, que não se permite olhar diretamente. O corpo verdadeiramente aos frangalhos, dilacerado. E ao acolher-me ao seu colo, sinto verdadeiramente tal massa pulsante pressionar-me o peito.


as coisas se desgastam

as coisas se desgastam

as coisas se desgastam, indubitavelmente

invariavelmente

inevitavelmente

e desgastam-se pois todo tempo vivido

rememora o mesmo tempo

e lamenta

não há outra saída

desgasta-se porque olham-se

e dão de cara

com o absurdo

 

quão paradoxal é o homem

que desconfiado da finitude das coisas

pemite-se idolatrar a permanência

e para evitar que não veja seu reflexo

arranca-as  de seu tempo

 

necessário é:

criar vãos

medir distâncias

atiçar saudades

respeitar o justo tempo morto das coisas

pois  saudade justamente (e sempre)

uma promessa

a saudade, verdadeiramente

um freio

às coisas que se atritam

 

que sobra à palavra amor?

apenas conjúrio de maldição

como delimitada a ser definitiva:

eu amo

 

há um porém que preserva

um saldo devedor que sempre reatualiza

consternando os dados postos de lado

 

de certo paralisamos na origem das coisas

por onde, puxados para o passado triste, então

retomando mitos já modelados

outros amores fracassados

terríveis dores da solidão

 

percebe

a força com que nos movemos em direção as coisas

tais vetores somam-se

quando postos na mesma direção

mas também anulam-se

pois não permitem-se representáveis

 

remodela-te conforme as pulsões momentâneas

todas lançadas e inconcretizáveis

mas transformadas

relativizadas

na relação da parte com o todo

 

pois que todos os olhares e toques

desmintam tal maldição

reafirmando-a cheia de ambiguidade

e a todo momento:

eu amando